JACÓ ARMÍNIO
E A DOUTRINA DA ELEIÇÃO
E A DOUTRINA DA ELEIÇÃO
C. Kleber Maia
A maioria dos teólogos
protestantes, herdeiros da Reforma do século XVI, crê que Deus predestina
indivíduos para a salvação ou para a condenação eterna, mas várias questões são
polêmicas, tais como: Qual a base escolhida por Deus, para a eleição ou
condenação? Qual o papel de Cristo e de cada indivíduo neste processo? O que
esta doutrina revela sobre o caráter de Deus?
O teólogo holandês Jacó
Armínio (1559-1609) rejeitou a dupla predestinação proposta por João Calvino
(1509-1564), que afirma que Deus, por meio de um decreto, elege alguns homens
para a salvação e reprova outros homens, condenando-os à eterna punição no
inferno, sem levar em conta qualquer ato ou condição destes homens[1], e, por isso, foi acusado
de propagar heresias, como o pelagianismo[2] ou o socialismo[3].
Jacó Armínio nasceu em Oudewater,
na Holanda, e latinizou seu nome para Jacobus Arminius; iniciou a sua formação
teológica em Leiden, depois estudou em Genebra, sob a direção de Teodoro Beza,
sucessor de Calvino, transferiu-se para a Universidade da Basileia, e concluiu
seus estudos em Genebra. Em 1588, aos 29 anos de idade, retornou à Holanda e tornou-se
o pastor da principal igreja protestante do país, em Amsterdã, a qual pastoreou
por 15 anos.
Em 1603 Armínio foi nomeado
professor de Teologia na Universidade de Leiden. Ali, ele enfrentou muitas controvérsias
e oposição de outros professores, especialmente Francisco Gomaro, que o acusava
de heresia, forçando-o a apresentar uma defesa de sua posição. Em Leiden, ele
escreveu discursos, disputas públicas e privadas, tratados teológicos e
apologéticos, incluindo a Declaração de Sentimentos, sua principal obra.
Armínio faleceu em 19 de
outubro de 1609. No seu funeral, seu amigo Bertius proferiu a honrosa oração:
“Viveu na Holanda um homem; os que o conheceram não puderam estima-lo
adequadamente; os que não o estimavam, jamais o conheceram adequadamente”.
Jacó Armínio permaneceu
dentro da Igreja reformada da Holanda toda a sua vida, mas sua teologia “segue
uma trajetória diferente da teologia de seus oponentes” (STANGLIN; McCALL,
2016, p. 37). Seu principal biógrafo afirma que ele nunca concordou com o
pensamento de Beza quanto à dupla predestinação (BANGS, 2015, p. 160). Em suas
pregações na Epístola aos Romanos, ele já negava a eleição incondicional e a
graça irresistível (OLSON, 2001, p. 473).
Armínio conceitua a eleição[4] para a salvação como “o
decreto eterno de Deus, pelo qual, de si mesmo, desde a eternidade, Ele decidiu
justificar em Cristo (ou por Cristo) os fiéis, e aceita-los na vida eterna,
para o louvor da sua gloriosa graça” (ARMÍNIO, v3, p. 300).
Porque Deus é o summum bonum, sua volição para com suas
criaturas é benevolente; sua primeira ação para com elas não pode ser a condenação.
Ele fundamenta seu entendimento acerca da salvação no duplo amor de Deus: amor
a Si mesmo (à Sua justiça e retidão) e o amor às suas criaturas. A ideia de
Deus criar pessoas para que pudesse salvar alguns e enviar outros para o
inferno é vista por Armínio como totalmente inconsistente com o caráter e a
natureza de Deus.
Para Armínio, a eleição é
cristocêntrica, pois ela acontece inteiramente “em Cristo”. Ele considera que a
visão calvinista não honra adequadamente a Cristo, e faz da salvação “apenas
uma causa subordinada da salvação que já havia sido preordenada” (ARMÍNIO, v1,
p. 230).
Na “Declaração de
Sentimentos”, ele expõe a sua visão sobre a predestinação, baseando-a não na
lógica dos decretos divinos, como fizeram seus oponentes, mas na pessoa e obra
de Jesus. Na sua ordem dos decretos, o primeiro é aquele no qual o Pai elege
Cristo como “Mediador, Redentor, Salvador, Sacerdote e Rei” (ARMÍNIO, vol. 1,
p. 226). Cristo é a fundação e o foco da eleição, da salvação e do próprio
cristianismo, aquele “em quem o decreto é fundamentado” (ARMÍNIO, v2, p. 100),
e “a causa meritória daquelas bênçãos que foram destinadas aos fiéis por esse
decreto” (ARMÍNIO, v2, p. 92).
Para Armínio, Cristo “é mais
do que um meio para realizar um decreto anterior e não cristológico. Ele é mais
do que o executor do decreto. Ele é o fundamento do decreto, de maneira que
toda a eleição é ‘em Cristo’” (BANGS, 2015, p. 414; ARMÍNIO, v2, p. 92; v3, p.
300). Daniel (2017, p. 430) assevera que a obra de Jesus não é um instrumento
“criado por Deus para formalizar a salvação que Ele já havia determinado dar a
apenas algumas pessoas, as quais Ele já havia escolhido antes da fundação do
mundo”.
Armínio declara que Jesus “é
considerado pré-ordenado, e nós, nele, e Ele, na ordem da natureza e das
causas, antes de nós. Ele foi ordenado salvador, e nós, como aqueles a serem
salvos” (ARMÍNIO, v3, p. 131). Colocar a eleição dos homens em primeiro lugar,
como no calvinismo, é inverter a ordem apresentada nas Escrituras (ARMÍNIO, v3,
p. 310).
Para ele, Deus ama a
humanidade exclusivamente “em Cristo” (ARMÍNIO, v1, p. 230), pois “a justiça de
Deus exige que seja feita a reconciliação pelo sangue de Cristo” (ARMÍNIO, v3,
p. 310). Ele assegura que não poderia haver nenhum lugar para a predestinação,
exceto em Cristo, “visto que Deus não pode amar um pecador para a salvação, a
não ser que o pecador se reconcilie com Ele em Cristo” (ARMÍNIO, v3, p. 287).
Armínio rejeitou a doutrina
calvinista da dupla predestinação, por diversas razões: não é o fundamento do
cristianismo, nem da salvação; não foi admitido por Concílios, nem nas
Confissões, nem pelos doutores da igreja; fere a natureza de Deus e do homem; é
contrária ao ato da criação e à natureza da vida e da condenação eterna; é
incoerente com a natureza do pecado e da graça; faz de Deus o único pecador; é
prejudicial à salvação, inverte a ordem do evangelho e subverte o fundamento da
religião (ARMÍNIO, v1, p. 226-227).
Ele defende, ainda, que a
eleição é condicional. Acerca do decreto da eleição
individual, ele afirma que ele “tem o seu embasamento na presciência de Deus,
pela qual Ele sabe, desde toda a eternidade, que tais indivíduos, por meio de
sua graça preventiva, creriam, e por sua graça subsequente, perseverariam”
(ARMÍNIO, v1, p. 227). A explicação de Armínio da natureza da predestinação “é
completamente teocêntrica” (STANGLIN; McCALL, 2016, p. 43). Deus conhece certamente
aquele que atende à condição que Ele mesmo estabeleceu para a salvação, a fé. A
salvação é ofertada a partir da presciência divina da desobediência humana, e
declara que não encontra na Bíblia “algum decreto, pelo qual Deus tenha
decidido exibir a sua própria glória, na salvação destes e na condenação
daqueles, exceto pela presciência da queda” (ARMÍNIO, v3, p. 64).
Sem este conhecimento divino
não poderia haver eleição condicional. Armínio afirma que “Deus não pode ‘amar
previamente e considerar, afetuosamente, como seu’ a nenhum pecador”, a não ser
que Ele o conheça previamente, em Cristo, e o considere como um crente (ARMÍNIO,
v3, p. 455). A fé prevista é condição indispensável para a eleição: “Ninguém
está em Cristo, exceto pela fé; pois Cristo habita em nossos corações pela fé,
e somos enxertados nele e incorporados nele pela fé. Portanto, Deus não
reconhece como seu e não escolhe para a vida eterna nenhum pecador, a menos que
o considere como um crente em Cristo, e feito um só, com Ele, pela fé” (ARMÍNIO,
v3, p. 303).
A fé necessária para a
salvação deve ser perseverante, pois “se alguém cair da fé, cai dessa união e, em
consequência disso, da benevolência de Deus pela qual foi aceito, previamente,
em Cristo”. (ARMÍNIO, v3, p. 463). Para Armínio, o crente precisa perseverar na
fé para ser, de fato, um eleito (ARMÍNIO, v1, p. 350, 351).
Deus pode requerer fé do ser
humano, pois “decidiu conceder aos homens graça suficiente, pela qual os homens
podem crer” (ARMÍNIO, v1, p. 348). A
graça salvadora objetiva restaurar a natureza caída e habilitar o homem a crer
e buscar a Deus. A fé é a condição da eleição, não a base meritória dela (ARMÍNIO,
v1, p. 507). A eleição, para ele, é eterna (ARMÍNIO, v1, p. 507), pessoal e
individual (ARMÍNIO, v1, p. 227)[5].
Estabelecendo, em sua
teologia, a necessidade primordial da graça divina para que o homem possa crer,
Armínio é inocentado da acusação de sustentar o pelagianismo, colocando a
iniciativa para a salvação exclusivamente em Deus. Para ele, a eleição deve ser
graciosa e evangélica - apresentar uma boa nova de salvação (ARMÍNIO, v2, p.
92). A predestinação não pode ser um decreto de condenação, mas que compartilhe
a boa notícia de que todos podem ser salvos, pela fé em Cristo.
Ele considera que a
reprovação eterna é baseada na presciência divina dos pecados cometidos pelos
homens (ARMÍNIO, v3, p. 343, 344) e que esta reprovação “necessariamente tem
duas coisas que a antecedem: o ódio pela injustiça, e a presciência de que o
indivíduo, por sua própria culpa, será culpado de injustiça, por omissão ou por
comissão” (ARMÍNIO, v3, p. 335).
Conclusões
Armínio entendia que a
predestinação revela o coração de um Deus gracioso, cuja característica
fundamental é o amor. Embora Deus permita que alguns pereçam, sendo reprovados
eternamente, isto ocorre de acordo com a resposta que as pessoas darão à Sua graça.
O ser humano diz “não” ao resistir à graça divina, que o capacita a dizer “sim”.
A eleição, para ele, é
cristocêntrica; Cristo é o Eleito primeiro, como Salvador de todos homens, que
serão eleitos nele, ao crerem, aceitando a oferta da livre graça divina, quando
não resistem ao chamado do Espírito Santo, na apresentação do evangelho.
A eleição de Cristo, como
salvador de todos os homens, como oferta graciosa de Deus a ser recebida em fé
por um coração que já foi predisposto pela graça é o que melhor representa a
natureza do Deus amoroso que enviou Seu Filho para morrer pelos homens, a
natureza do homem (criado à imagem de Deus), do evangelho, como boas novas, do
pecado como rebeldia e da graça como livre, capacitante e universal.
Armínio não defende um
sinergismo igualitário, onde Deus e homem caminham para uma reconciliação para
a qual ambos tomaram a iniciativa, mas um sinergismo[6] onde Deus toma toda a
iniciativa e proporciona todos os meios, requerendo apenas que o homem confie
em seu Salvador.
Ele sustenta os princípios
reformados - Sola Scriptura, Sola Gratia e Sola Fide - salvação pela graça por
intermédio da fé, conforme as Escrituras. Também eleva o valor da cristologia,
e tenta entender todas as demais doutrinas à luz da revelação de Deus em Cristo
Jesus.
A teologia de Armínio e seu
entendimento quanto à Eleição para a Salvação oferece esperança para a igreja, e
para a teologia, ao tornar o evangelho acessível a todos e a certeza da
salvação possível, aos que creem em Cristo.
REFERÊNCIAS
ARMINIO,
Jacó. As Obras de Armínio. 3 volumes. Traduzida por Degmar Ribas. Rio de
Janeiro: CPAD, 2015.
BANGS,
Carl. O. Armínio – um estudo da reforma holandesa. Traduzida por Wellington
Mariano. São Paulo: Reflexão, 2015.
DANIEL,
Silas. Arminianismo, A Mecânica da Salvação: Uma exposição histórica,
doutrinária e exegética sobre a graça de Deus e a responsabilidade humana. Rio
de Janeiro: CPAD, 2017.
OLSON,
Roger E. História da Teologia Cristã – 2000 anos de tradição e reformas. São
Paulo: Vida, 2001.
OLSON,
Roger E. Teologia Arminiana – mitos e realidades. Traduzida por Wellington
Mariano. São Paulo: Reflexão, 2013.
PICIRILLI,
Robert R. Graça, Fé e Livre Arbítrio – visões contrastantes da salvação:
calvinismo e arminianismo. São Paulo: Reflexão, 2017.
SHANK,
Robert. Eleitos no Filho: um estudo sobre a doutrina da eleição. São Paulo:
Reflexão, 2015.
STANGLIN,
Keith D.; MCCALL, Thomas H. Jacó Armínio – teólogo da graça. São Paulo:
Reflexão, 2016.
Carlos
Kleber Maia é pastor da Assembleia de Deus no RN, mestrando em Teologia
(FABAPAR) e Pós-graduado em Teologia do Novo Testamento Aplicada (FTBP). É
responsável pelo canal Graça e Poder (www.youtube.com/c/graçaepoder).
[1]
Timothy George (Teologia dos Reformadores, São Paulo, Vida Nova, 1994, p. 232)
define a predestinação calvinista como: absoluta, já que não está condicionada
a nenhuma contingência finita; particular, pois pertence a indivíduos e não a
grupos; dupla, pois Deus, para Seu louvor, elegeu uns para a vida eterna, e
outros para a perdição eterna.
[2] O
pelagianismo é defendido por Pelágio, um monge britânico do séc. IV; prega que
o homem tem capacidade natural de viver uma vida santa e sem pecado e alcançar
a salvação por sua vontade livre; nega o pecado original, e minimiza a
necessidade da expiação realizada por Cristo e da graça divina para a salvação,
cf. TITILLO, Thiago Velozo, A Gênese da Predestinação na História da Teologia,
Fonte Editorial, 2013.
[3] O
socianismo ou socinianismo está ligado a Fausto Socino (falecido em 1604); não
crê na Trindade e rejeita a doutrina do pecado original, entre outras doutrinas.
[4]
Armínio, como Calvino e outros teólogos, utiliza os termos “predestinação” e
“eleição” como sinônimos, de forma intercambiável. Silas Daniel ressalta a
diferença entre estes dois conceitos teológicos, afirmando que “conquanto sejam
duas coisas intimamente relacionadas, não são uma e a mesma coisa, e
predestinação não envolve condenação eterna” (DANIEL, 2017, p. 423, 424).
[5]
Muitos arminianos posteriores, como H. Orton Wiley, Robert Shank e William
Klein, defenderam uma visão corporativa da eleição. Ver COTTRELL, Jack em PINNOCK,
Clark H.; WAGNER, John D. Graça para Todos: a dinâmica arminiana da salvação,
São Paulo, Reflexão, 2016.
[6]
Sinergismo é a crença teológica na livre participação humana na salvação. Roger
Olson (2013, p. 24) faz distinção entre sinergismo evangélico (arminianismo clássico)
e o sinergismo herético (pelagianismo). Leroy Forlines (Classical Arminianism,
2011, p. 264, 267) usa a terminologia “monergismo condicional”. Mathew Pinson
afirma que a visão de Armínio não representa “uma forma de sinergismo no qual a
obra de Deus e a obra do homem cooperam, mas sim uma relação na qual a vontade
e a obra de Deus dentro do homem [são] bem-vindas numa atitude de confiança e
submissão” (PICIRILLI, 2017, p. 195).
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